Tema do documentário “Narciso em férias”, que estreou nesta semana, durante a 77ª edição do Festival de Veneza, a ditadura militar foi assunto na entrevista de Caetano Veloso à DW Brasil publicada na última quinta-feira (10). Ele participa da produção artística com músicas e relatos daquele período.
“(Gilberto) Gil e eu fomos levados para o 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca. Na primeira semana, eu fiquei numa solitária. Foi terrível. Dormia no chão, tinha uma privada perto da minha cabeça, um chuveiro por cima da privada e nada mais. Depois de alguns dias, eu estava muito mal da cabeça. Achava que nunca tinha vivido outra coisa, senão aquilo. No fim dessa primeira semana, fomos transferidos, Gil e eu, para um outro quartel (da Polícia do Exército da Vila Militar, no subúrbio de Deodoro), onde eu dividi o xadrez com outros rapazes. Eu num xadrez, e Gil no outro”, recordou Caetano à DW.
“Eu vivi muitos momentos terríveis. No período final da primeira semana nessa solitária que eu descrevi, fiquei muito mal da cabeça. Achei que a vida tinha sido sempre aquilo. Porque eu dormia e acordava, e estava sempre ali. Não via ninguém, não via nem a mim mesmo. O carcereiro colocava café e um pedaço de pão através de uma portinhola. Eu tinha uma alucinação de que a minha vida era só aquilo. Eu me lembrava das coisas como se elas fossem apenas sonhos”, contou.
O culto à ditadura e à tortura foram os carros-chefe da campanha de Jair Bolsonaro (à época no PSL, hoje sem partido) rumo à presidência da República em 2018. Sua vitória naquele mês de outubro vem causando, desde janeiro do ano seguinte, efeitos aos que o apoiaram ou não, exatamente como ambos os lados projetavam.
O músico de 78 anos vê diferenças teóricas entre o que foi vivido pelo País a partir de 1964 e o que começou em 2019. Mas considera que, na prática, haverá resultados bastante semelhantes.
“Nós temos agora um governo de extrema direita, mas que foi eleito democraticamente. Oficialmente, não temos um governo autoritário. Temos um governo inimigo das liberdades. Eles aparelharam as áreas de cultura, de educação. Eles estão fazendo uma corrosão da situação democrática. Isso é perigoso. Sem falar no total desrespeito pelos cuidados ambientais. É duro, porque estão fazendo uma onda populista para se reelegerem em 2022. A perspectiva é sombria. No médio prazo, a gente olha para frente e não vê uma coisa muito boa, não. Eles ficam lutando contra os princípios da democracia, mas dentro das formalidades da democracia. É tenso”, observou o baiano.
A prisão que durou 54 dias em 1968 é rememorada por Caetano Veloso no documentário dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil. “Narciso em férias” está disponível desde 7 de setembro na plataforma Globoplay.