Feriado em quase todo o País, a sexta-feira (20) era para ser marcada unicamente pela reflexão do Dia Nacional da Consciência Negra, numa homenagem ao líder Zumbi dos Palmares. Mas, a poucas horas da data especial chegar, uma notícia abalou até o mais cético dos cidadãos. Em Porto Alegre – terra onde a candidata do PCdoB, Manuela D’Ávila, disputa o segundo turno do pleito que elegerá o novo prefeito da capital gaúcha – um homem negro foi espancado até a morte dentro de uma unidade de supermercado do grupo Carrefour. Trata-se de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, que perdeu a vida por conta da selvageria humana. Dois seguranças brancos foram presos em flagrante. Maricá (RJ), que, na noite de quinta – momento do ocorrido – se preparava para receber sua versão do ato “Vidas Negras Importam”, amanheceu com música e gritos de resistência. O manifesto reuniu militantes na Praça do Turismo.
“Hoje é um dia de reflexão. Estamos perdendo vidas por conta do racismo que assola esse país de maneira escancarada. A violência é uma questão legitimada nesse cenário político. Temos que continuar resistindo, ir às ruas, mostrando que as vidas negras importam. Além de resistir, vamos continuar existindo. Essa é uma luta pela vida”, destacou Simone Miranda, presidenta da União Brasileira de Mulheres (UBM) de Maricá.
“É importante termos consciência que a luta contra o racismo é uma luta de todos, não somente do povo negro. É uma responsabilidade de toda a sociedade. Precisamos entender que, na nossa sociedade, muitos não se assumem racistas. Mas, nesses momentos em que vemos uma violência como essa é que a gente entende que a nossa luta é cada vez maior. É fundamental conscientizar toda a população de que não podemos ser julgados pela cor da nossa pele e sofrer violência por conta disso. Chega de racismo”, reforçou o coordenador da União de Negros pela Igualdade (Unegro) Maricá, Ricardo Teixeira.
Para Luciene Mourão, presidenta do Pela Ordem Primeiro Elas (Pope) e vice da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) Maricá, “as políticas afirmativas não são suficientes”. Principalmente “porque elas não são ainda totalmente utilizadas no País.”
“Viemos de um mundo escravocrata, com a cultura de um racismo estrutural. O que aconteceu em Porto Alegre é racismo estrutural. Mudar isso só é possível com políticas públicas, movimentos sociais. Não podemos parar. Sou uma mulher preta, feminista e acredito nessa mudança, mas ela tem que vir de todos, inclusive dos brancos”, salientou Luciene, que teve o discurso encorpado por outras lideranças também presentes no evento, como Fátima Moura, coordenadora de organização do Movimento Negro Unificado (MNU).
“Não há, ainda, o respeito, o tratamento esperado por nós, negros. A luta do MNU contra o racismo estrutural é incansável, em grande parte do Brasil, incluindo Maricá. Temos que fortalecer essa militância nos trabalhos de base, de construção. A luta de combate é irrestrita ao racismo. Classe, gênero, condição social devem sempre ser agendas prioritárias e inegociáveis por todos os movimentos negros. Vidas negras importam”, enfatizou Fátima.
Transformação pelo ato de educar
A professora Priscila Lima, do Fórum Estadual de Mulheres Negras (Femnegras Maricá) vê na educação a possibilidade de plantar a semente para a transformação do comportamento social. Ela acredita que “tudo começa pelo respeito” e que, “se isso for trabalhado, haverá mudança”. Pensamento desenhado também por Luzineia Braga, presidenta do Movimento Negro do PDT de Maricá.
“Começa pelo alicerce. Crianças negras e brancas só veem negros abrindo portas, servindo… O negro sempre tem os piores trabalhos. Você entra num banco e não vê negro, a não ser limpando. Isso tem que acabar. O branco sempre se acha no poder. Vira uma normalidade. É normal você passar e ver uma mulher negra com a vassoura limpando uma loja, mas não é normal ver uma mulher branca e loira”, argumenta Luzineia.
“Se estamos aqui hoje é porque outras pessoas vieram antes da gente. A luta sempre continua. Estou otimista, pois, por exemplo, em Niterói, só tinha uma vereadora negra. Elegeram mais uma, e que é trans (Benny Briolly). Isso é muito importante. Ao mesmo tempo, Joinville (SC) fez sua primeira vereadora negra na história (Ana Lúcia Martins), e ela já foi provocada nas redes sociais, isso é muito lamentável. O racista não dorme. Nós temos que estar o tempo todo vigilantes. Quero homenagear a Romilda Linda, até hoje a única vereadora negra da cidade de Maricá. Quero também destacar essa união aqui, hoje, dos movimentos. Precisamos nos juntar nas nossas pautas, estarmos sempre unidos. Isso (a união) me emociona”, afirmou Aduni Benton, diretora nacional do Movimento Democrático Afrodescendente pela Igualdade Racial (Movidade).
Problema histórico
Sandra Gurgel, integrante do coletivo Afroencantamento, é especialista em história da África e do negro no Brasil. A professora, que cursa doutorado na PUC-SP, lembra que “a consciência de ser humano era negada aos negros”.
“Historicamente, o negro era tido como um objeto de produção de capital. Por que estamos hoje aqui? Porque celebrar o Dia da Consciência Negra é celebrar todas aquelas pessoas que vieram antes de nós. Mesmo atualmente, a maior taxa de mortalidade é de negros e a maior taxa de desemprego é dos negros. Temos que dar energia positiva para quem quer caminhar junto. Somos um povo que se ressignificou e se mantém forte. Essa é a ideia do Afroencantamento: a gente celebrar o afeto”, sublinha, ressaltando que “Maricá precisa fazer o resgate da sua história negra”.
No entendimento da professora universitária Márcia Passos, é agora que “as coisas estão aparecendo”. Ela integra o grupo Luz Negra e considera que “o Brasil nunca deixou de ser um país racista”, além de carregar “uma cultura extremamente autoritária”.
“Temos que considerar que, aos poucos, avançamos, sim. Então, essas coisas estão aparecendo. A nossa sociedade é construída em cima da ideia do serviçal. E quem sempre foi o serviçal? O elemento negro. Agora, conseguimos criar leis, mas o importante é entendermos que temos um racismo estrutural, aquele que vê cada pessoa num lugar e que permite que algumas ascendam em detrimento de outras. E esse elemento ‘outro’ ainda é o negro. Então, o término desse tipo de situação é difícil alcançar. Precisamos educar as nossas crianças, olhar o nosso entorno. É difícil combater um fato quando todo o entorno diz que aquilo é natural. Temos uma naturalização do racismo e da violência contra o negro. É isso que a sociedade precisa estar atenta. Não basta ser contra o racismo, há que ser antirracista”, acrescenta Márcia.
“Racismo no Brasil é estrutural, está na base da sociedade brasileira desde a escravidão. Somos uma sociedade muito racista e preconceituosa. O racismo, o machismo e a LGBTfobia caminham juntos. Por isso, nós, negros LGBTs, lutamos como movimento social, com as entidades populares, numa articulação para romper com esse racismo estrutural e pelos direitos da nossa comunidade LGBT. Estamos vivendo um momento de fascismo, de repressão e violência. Nunca as polícias assassinaram tantos negros, e nós, LGBTs negros, também somos vítimas de todos esse processo de extermínio”, observa o católico e servidor público Carlos Alves, coordenador estadual LGBT do MNU-RJ.
Adesão espontânea
Seu Venílson Ferreira é lavrador, pai de quatro filhos. Porém, ao longo de 59 anos de vida, já exerceu e ainda trabalha com outras atividades. Na manhã desta sexta ele passava pela Praça Conselheiro Macedo Soares quando viu o movimento de mulheres unidas contra o preconceito. Parou, sentou, assistiu parte do ato e, assim como todas as citadas acima, falou exclusivamente com o Portal 65. Primeiro, classificou os responsáveis pela morte do homem negro no supermercado de Porto Alegre como “racistas”. Além disso, ainda fez questão de trazer ao debate outras pautas sociais, condenando, por exemplo, as agressões às mulheres. No fim, deixou uma frase que pode servir de reflexão para entender o motivo de um mundo tão intolerante, violento e inflexível: “Ninguém quer dialogar”.